Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é
a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma idéia do amor?
Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos. Contemplai o touro que
levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo que dois de vossos camaradas
conduzem à égua que passiva o espera e arreda a cauda para recebê-lo. Observai
como seus olhos chamejam. Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas
curvetas, aquelas orelhas em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras
convulsões, aquelas narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas
que se empinam e esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto
que lhe destinou a natureza.
Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens
da espécie humana. Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade
todos os predicados de que a natureza dotou os irracionais.
Há animais
que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os peixes escamados. A fêmea lança
sobre a vasa milhões de ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen
sem preocupar-se com a dona.
A maioria dos animais que se acasalam não
experimenta prazer por mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo
acabado. Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo é
sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma volúpia inexaurível – prazer
exclusivo da vossa espécie. Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os
animais só o podem em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências
direis com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria adorar a
Divindade”
Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a
natureza, o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio corpo,
tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da própria
saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia.
Todos os outros
sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais em fusão com o
ouro.
Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros elos de união os
dotes do corpo e do espírito.
Nam facit ipsa suis interdum famina
factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat
secum vir degere vitam.
(Lucrécio, liv. 4).
Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos a
própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos dessa obra de que a
natureza lançou os alicerces.
Eis o que possuís de superior aos animais.
Se, porém, fruís prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos
padeceis de que eles nem têm idéia! O que há de horrível para vós é haver a
natureza em três quartos da terra envenenado os prazeres do amor e as fontes da
vida com um mal tremendo, a que só o homem está sujeito e que lhe infecciona os
órgãos da geração.
Esta peste não é como tantas outras doenças filhas de
nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu no mundo. As Frinéias, as
Laíses, as Floras, as Messalinas não foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os
homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo.
Se alguma
vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o
próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o
melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse
mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma
possível. Quero crer. Mas é difícil.
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