Nélson Jahr Garcia
Voltaire (1694-1778) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Seu
estilo, inconfundível, está presente em todos os seus romances, peças teatrais,
trabalhos sobre filosofia e ciências. O traço mais marcante de seus textos é a
agressividade inteligente, manifesta através de críticas ácidas e de uma ironia
grave, geralmente beirando o sarcasmo.
Voltaire, com humor, castigou
reis, nobres, ministros, religiões, teorias científicas e filosóficas. Nesse
aspecto “Dicionário filosófico” é, talvez, o trabalho mais significativo. Não
perdoou autoridades, costumes, crenças ou teorias; é difícil lembrar alguma que
não tenha sido alvo de sua verve.
Suas críticas procuram demonstrar as
contradições embutidas nas concepções que ataca. Às vezes o faz de forma leve e
sutil, como neste argumento, em que ridiculariza a certeza
humana:
“Se perguntásseis a todos os homens antes de
Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos
absoluta certeza – responder-vos-iam à uma voz.
Tinham certeza, e no
entanto estavam errados.”
Em outros momentos, investe com mais
severidade:
“Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam
estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo,
Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio.”
Não raro recorre à hostilização aberta:
“As inimitáveis
tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram
rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre
lhes falta integridade.”
Chega a apelar para a
pilhéria:
“Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em
companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu
o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele
tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim –
disse-lhe eu. Eis um belo purgante. Ele compreendeu não se poder dizer que um
purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos
cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas
emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.”
Em outros casos o
chiste chega a ser corrosivo:
“Ben al Betif, digno chefe dos dervís,
disse-lhes um dia: “Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda
freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui
misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com
repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos
homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses
temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um
jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um
ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho
de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez
pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para
maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis
de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse:
“Para maior glória do nosso invencível monarca”? Há certamente maior distância
do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.”
Voltaire não
simpatizava com menções a milagres e reprovava:
“Segundo a energia
do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem
prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão
de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos
milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas
leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua
cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de
baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.”
O tema da
ressurreição tampouco o animava, disparava com
precisão:
“Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são
monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma
nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade
tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum
governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia
reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os
miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem
cérebro?”
Incomodava-o a idolatria, com presteza
denunciava:
“Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos
diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob
figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão
ignorância. Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber
quem primeiro inventou os ídolos?”
Contra as críticas, Voltaire
devolvia outras,muitas vezes em defesa do criticado:
“Dizem alguns
teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico
tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por
eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero
humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples
vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso
exclamarei: ‘Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!’”
Outro
exemplo sugestivo:
“Um mendigo dos arredores de Madri esmolava
nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se
dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, –
respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos.
E com
toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. Era um mendigo soberbo. Um nada
lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo
não suportava reprimendas.”
Esse era o genial Voltaire. A leitura de
suas obras nos faz meditar melhor sobre nossos pensamentos e a forma como os
comunicamos. Podemos não rir de suas frases, mas um sorriso discreto e salutar é
inevitável.
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