sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
Amor
Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é
a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma idéia do amor?
Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos. Contemplai o touro que
levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo que dois de vossos camaradas
conduzem à égua que passiva o espera e arreda a cauda para recebê-lo. Observai
como seus olhos chamejam. Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas
curvetas, aquelas orelhas em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras
convulsões, aquelas narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas
que se empinam e esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto
que lhe destinou a natureza.
Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens
da espécie humana. Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade
todos os predicados de que a natureza dotou os irracionais.
Há animais
que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os peixes escamados. A fêmea lança
sobre a vasa milhões de ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen
sem preocupar-se com a dona.
A maioria dos animais que se acasalam não
experimenta prazer por mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo
acabado. Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo é
sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma volúpia inexaurível – prazer
exclusivo da vossa espécie. Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os
animais só o podem em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências
direis com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria adorar a
Divindade”
Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a
natureza, o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio corpo,
tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da própria
saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia.
Todos os outros
sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais em fusão com o
ouro.
Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros elos de união os
dotes do corpo e do espírito.
Nam facit ipsa suis interdum famina
factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat
secum vir degere vitam.
(Lucrécio, liv. 4).
Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos a
própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos dessa obra de que a
natureza lançou os alicerces.
Eis o que possuís de superior aos animais.
Se, porém, fruís prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos
padeceis de que eles nem têm idéia! O que há de horrível para vós é haver a
natureza em três quartos da terra envenenado os prazeres do amor e as fontes da
vida com um mal tremendo, a que só o homem está sujeito e que lhe infecciona os
órgãos da geração.
Esta peste não é como tantas outras doenças filhas de
nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu no mundo. As Frinéias, as
Laíses, as Floras, as Messalinas não foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os
homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo.
Se alguma
vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o
próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o
melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse
mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma
possível. Quero crer. Mas é difícil.
Amizade
Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um
monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas
porque os maus não adjungem mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam
companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos
congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes
têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos. Cétego era cúmplice de Catilina.
Mecenas era cortesão de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece
esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais ou
menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra e o número de
serviços prestados, etc.
O entusiasmo da amizade foi mais forte entre
gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as histórias que teceram esses
povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo um pouco
secos.
A amizade era objeto de religião e legislação entre os gregos. Os
tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento! Houve quem o
tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o acessório pelo
essencial. A amizade era prescrita na Grécia pela lei e pela religião.
Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás: toleravam-na os costumes. É
preciso não imputar à lei abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.
Alma
Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo (1) é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática.
Quem mais pode conhecer a própria essência?
Alma chamamos ao que anima.
É tudo o que dela sabemos: a inteligência humana tem limites. Três quartos do
gênero humano não vão alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto
indaga. Ninguém obteve nem obterá resposta.
Pobre filósofo! Vês uma
planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos
têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo
teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes
espírito.
Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta.
Existirá porém um ser material – vegetação? Aquele corpo impele outro. Porém
encerra ele em si um ente distinto – força? Aquele cão traz-te uma perdiz.
Existirá porém um ser chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria
sido preceptor de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo,
encerram uma forma substancial – a vida?
Se uma tulipa pudesse falar e
dissesse: Minha vegetação e eu somos dois seres juntos formando um só, não te
ririas da tulipa?
Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo.
Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo.
Que pensas com a cabeça.
Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te
luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma
alma?
Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram:
Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento; esse algo deve ser
extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato, um tênue simulacro, uma
enteléquia, um número, uma harmonia. Finalmente, segundo o divino Platão, é um
composto do mesmo e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro depois
de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa que nem o
imaginas.
Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis
o que seja esse ente imaterial.
— Não, – respondem os sábios – porém
conhecemos sua natureza: pensar.
— Como o sabeis?
— Porque ela
pensa.
— Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes quanto
Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos: que a faz
cair?
— Sabemos que uma pedra não tem alma.
— De
acordo.
— Sabemos que uma negação, uma afirmação não são divisíveis, não
são partes da matéria.
— Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás
desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis. Possui gravitação
para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é
divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação
dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres
divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um
cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma
sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido
da indivisibilidade do pensamento absolutamente nada prova.
Que chamais
então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não
podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de
pensar.
Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o
mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria
vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde
vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não
caminhariam.
Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase
nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma
animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous.
Mas
eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal.
Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode
ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo
isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em
maus lençóis e feitas péssimas donas de casa.
Claro que a primeira alma
não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão
não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê-la senão
pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus
conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te
nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e
imortal, dela não terias prova alguma.
Relanceemos os interessantes
sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.
Um diz
que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do
todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não
criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam
no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não,
diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados,
intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto;
então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno,
volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo
caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro
cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o
corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o
dono.
Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a
alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua
essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva,
aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que
a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma
imaterial quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas
mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola.
Não é menor
o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de
desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará
sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos
doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá.
Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino
tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na
puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um
braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se
transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro
animal).
Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer a
respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem no
Levítico nem no Deuteronômio.
Em passo algum – e sobre isto não paira a
menor dúvida – Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida.
Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com
inferno. Tudo é temporal.
Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: “Se
depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e
reduzidos a número ínfimo entre as nações.
“Eu sou um deus cioso que
pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
“Honrai pai e
mãe para que vivais longo tempo.
“Nunca vos faltará o que
comer.
“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis
destruídos...
“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono.
Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que
comais e vos farteis.
“Gravai estas palavras em vossos corações, em
vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos
dias se multipliquem.
“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem
pôr.
“Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a
predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses
estrangeiros...- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos
acompanhe.
“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a
todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém.
“Não
comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.
“Não comais animais
que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco
espinho, etc.
“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade
como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos
vossos animais...
“Se não observardes todos os mandamentos e todas as
cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome,
pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha,
rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas.
“O
estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por
não servirdes ao Senhor.
“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne
dos vossos – filhos, etc.”.
É manifesto nada haver em todas essas
promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da
alma. Nem uma palavra sobre vida futura.
Muitos comentadores ilustres
foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes
dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado
pelas feras, exclamou em sua dor: “Eu acompanharei meu filho à sepultura, in
infernum, ao inferno”. Isto é: eu morrerei, já que meu filho
morreu.
Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os
hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque
Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois.
Inútil discutir
quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele
nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao
presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão
importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que
perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de
todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma
doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no
deserto.
Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não
o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo
estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros
cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.
Parece que só
depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas:
fariseus, saduceus, essênios. Ensina o historiador fariseu José no livro 13 das
Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que
a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios – é ainda José quem o afiança
– a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do
fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as
almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem
frio, não ventava nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das
almas ruins. Tal a teologia dos judeus.
Aquele que devia ensinar todos
os homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos
coisa alguma da própria alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e
Moisés, único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés que falava
com Deus face a face e não o via senão pelas costas, deixou os homens em
profunda ignorância dessa magna questão. Há apenas mil e setecentos anos que
estamos certos da existência e imortalidade da alma.
Cícero não tinha
mais que dúvidas. Seus netos aprenderam a verdade com os primeiros galileus que
arribaram a Roma.
Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da
terra onde não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria alma: Que
és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és não sei que, que pensa e
que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses cem bilhões de anos, nada
saberias por tuas próprias luzes, sem o auxílio de Deus.
Homem! Deus
outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência
das coisas por ele criadas.
ABRAÃO
Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam terra da promissão.
Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra
Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro. O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm, na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros. Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.
Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à idade de quase cento e quarenta anos.
Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe – “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois, burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo – e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham oferecer as irmãs aos reis de Menfis
Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.
Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita. Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas, bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão se tornou riquíssimo.
Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me, pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis, excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos à pedanteria.
Biografia do Autor
- FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do Œdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia Œdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).
- Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L’Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l’Homme, etc. Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.
- Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.
- Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.
Apresentação Nélson Jahr Garcia Filosofo
Nélson Jahr Garcia
Voltaire (1694-1778) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Seu
estilo, inconfundível, está presente em todos os seus romances, peças teatrais,
trabalhos sobre filosofia e ciências. O traço mais marcante de seus textos é a
agressividade inteligente, manifesta através de críticas ácidas e de uma ironia
grave, geralmente beirando o sarcasmo.
Voltaire, com humor, castigou
reis, nobres, ministros, religiões, teorias científicas e filosóficas. Nesse
aspecto “Dicionário filosófico” é, talvez, o trabalho mais significativo. Não
perdoou autoridades, costumes, crenças ou teorias; é difícil lembrar alguma que
não tenha sido alvo de sua verve.
Suas críticas procuram demonstrar as
contradições embutidas nas concepções que ataca. Às vezes o faz de forma leve e
sutil, como neste argumento, em que ridiculariza a certeza
humana:
“Se perguntásseis a todos os homens antes de
Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos
absoluta certeza – responder-vos-iam à uma voz.
Tinham certeza, e no
entanto estavam errados.”
Em outros momentos, investe com mais
severidade:
“Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam
estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo,
Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio.”
Não raro recorre à hostilização aberta:
“As inimitáveis
tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram
rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre
lhes falta integridade.”
Chega a apelar para a
pilhéria:
“Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em
companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu
o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele
tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim –
disse-lhe eu. Eis um belo purgante. Ele compreendeu não se poder dizer que um
purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos
cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas
emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.”
Em outros casos o
chiste chega a ser corrosivo:
“Ben al Betif, digno chefe dos dervís,
disse-lhes um dia: “Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda
freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui
misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com
repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos
homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses
temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um
jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um
ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho
de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez
pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para
maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis
de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse:
“Para maior glória do nosso invencível monarca”? Há certamente maior distância
do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.”
Voltaire não
simpatizava com menções a milagres e reprovava:
“Segundo a energia
do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem
prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão
de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos
milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas
leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua
cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de
baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.”
O tema da
ressurreição tampouco o animava, disparava com
precisão:
“Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são
monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma
nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade
tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum
governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia
reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os
miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem
cérebro?”
Incomodava-o a idolatria, com presteza
denunciava:
“Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos
diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob
figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão
ignorância. Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber
quem primeiro inventou os ídolos?”
Contra as críticas, Voltaire
devolvia outras,muitas vezes em defesa do criticado:
“Dizem alguns
teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico
tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por
eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero
humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples
vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso
exclamarei: ‘Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!’”
Outro
exemplo sugestivo:
“Um mendigo dos arredores de Madri esmolava
nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se
dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, –
respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos.
E com
toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. Era um mendigo soberbo. Um nada
lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo
não suportava reprimendas.”
Esse era o genial Voltaire. A leitura de
suas obras nos faz meditar melhor sobre nossos pensamentos e a forma como os
comunicamos. Podemos não rir de suas frases, mas um sorriso discreto e salutar é
inevitável.
AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um
transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.
Assinar:
Postagens (Atom)